sexta-feira, 26 de junho de 2009

"Autismo"





O tédio que não revelo
resvala e vala na taquicardia
do sorriso emoliente
em minha ativa participação.
A morte, amiga de infância,
palpita vida na força do meu viver.
Sou segredos, dons, acasos e órfão,
silenciados em músicas e pickles.
Meu menino, a cirurgia, aquele cão, o não,
a morte do pai e minha irmã
moram anônimos
no quarto e sala da alma.
Falo o que calo
sinto o que guardo
sob outro eu igual ao mim
bem melhor, porém.
Mas autista.
O sexo implícito, o tesão abissal,
a gula mamada,
a timidez flatulenta,
jazem no fundo do meu mar.
Escafandro-me, debalde.
Calo constatações,
blasono brilhos
suicido sonhos,
calafrio-me a colher náuseas
e navego fés esperançosas.
Sou sem teto de onde salto
para o chão do não ser.
Minha blandícia
quem acarinhará?

Artur da Távola

"Bilhete"




Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
Mário Quintana

quinta-feira, 25 de junho de 2009

"Homem e mulher"





Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
Carlos Drummond de Andrade