sexta-feira, 14 de novembro de 2008

"Relíquia Íntima"



Ilustríssimo, caro e velho amigo,

Saberás que, por um motivo urgente,

Na quinta-feira, nove do corrente,

Preciso muito de falar contigo.

E aproveitando o portador te digo,

Que nessa ocasião terás presente,

A esperada gravura de patente

Em que o Dante regressa do Inimigo.

Manda-me pois dizer pelo bombeiro

Se às três e meia te acharás postado

Junto à porta do Garnier livreiro:

Senão, escolhe outro lugar azado;

Mas dá logo a resposta ao mensageiro,

E continua a crer no teu Machado.

Machado de Assis

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

"O Caçador do Invisível"



O Poeta é caçador do invisível.

Ve o que não se ve.

Enxerga o que não se encontra.

Descobre o que não se sabe.

E sabe o que não se conhece.

Vai além do horizonte.

Colhe o arco-íris.

E espalha suas cores

Sobre as cicatrizes.

O Poeta é caçador do invisível.

Colhe o essencial do intangível.

Baila no Infinito.

Embaralha as estrelas.

E decifra-as com outros códigos.

Outras cifras.

O Poeta é caçador do invisível.

Busca o que não se encontra.

E encontra o que não se procura.

Recria e nomeia o indizível.

E vai além, onde não se alcança.

Cheio de Esperanças.

E traz a menina de tranças.

Ou, o menino que se embalança.

O Poeta é caçador do invisível.

Realiza façanhas incríveis.

Fernanda Benevides

"A Posse do Nada"



O mendigo

quando recolhe moedas

agradece

Mal sabe da excelência

que ele pratica a virtude

e nós o vício

Iara Vieira

"Diferença"



Nada que retorna é o mesmo

tampouco é cópia

do que sempre foi...

se você não é aquele

muito menos o será depois

pois aquele não é o mesmo

que um dia lhe pareceu que foi

tudo que retorna é o próprio

tão diferente

do que um dia foi

que aquele que um dia foi sapo

hoje é poeira

quiçá amanhã?

novamente estrela...

Ona Gaia

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

"Saudação a Palmares"



Nos altos cerros erguido

Ninho d'águias atrevido,

Salve! — País do bandido!

Salve! — Pátria do jaguar!

Verde serra onde os palmares

— Como indianos cocares —

No azul dos colúmbios ares

Desfraldam-se em mole arfar! ...

Salve! Região dos valentes

Onde os ecos estridentes

Mandam aos plainos trementes

Os gritos do caçador!

E ao longe os latidos soam...

E as trompas da caça atroam...

E os corvos negros revoam

Sobre o campo abrasador! ...

Palmares! a ti meu grito!

A ti, barca de granito,

Que no soçobro infinito

Abriste a vela ao trovão.

E provocaste a rajada,

Solta a flâmula agitada

Aos uivos da marujada

Nas ondas da escravidão!

De bravos soberbo estádio,

Das liberdades paládio,

Pegaste o punho do gládio,

E olhaste rindo pra o val:

"Descei de cada horizonte...

Senhores! Eis-me de fronte!

"E riste... O riso de um monte!

E a ironia... de um chacal!...

Cantem Eunucos devassos

Dos reis os marmóreos paços;

E beijem os férreos laços,

Que não ousam sacudir ...

Eu canto a beleza tua,

Caçadora seminua!...

Em cuja perna flutua

Ruiva a pele de um tapir.

Crioula! o teu seio escuro

Nunca deste ao beijo impuro!

Luzidio, firme, duro,

Guardaste pra um nobre amor.

Negra Diana selvagem,

Que escutas sob a ramagem

As vozes — que traz a aragem

Do teu rijo caçador! ...

Salve, Amazona guerreira!

Que nas rochas da clareira,

— Aos urros da cachoeira —

Sabes bater e lutar...

Salve! — nos cerros erguido —

Ninho, onde em sono atrevido,

Dorme o condor... e o bandido!...

A liberdade... e o jaguar!

Castro Alves

"Os Poemas"



Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo como de um alçapão.
Eles não têm pouso nem porto, alimentam-se
um instante em cada par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
No maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Mário Quintana

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

"Viver apenas um dia"



Viver apenas um dia ou ouvir um bom ensinamento é melhor do que viver um século sem conhecer tal ensinamento.
Sidarta Gautama

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

"O que será"



O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam nos mercados, que com certeza
Está na natureza, será que será
O que não tem certeza, nem nunca terá
O que não tem conserto, nem nunca terá
O que não tem tamanho
O que será que será
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decencia, nem nunca terá
O que não tem censura, nem nunca terá
O que não faz sentido
O que será que será
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E o mesmo Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo.
Milton Nascimento

terça-feira, 4 de novembro de 2008

"Dá-me a tua mão"



Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
Clarice Lispector

"Amar-te"



Amar-te- não por gozo da vaidade,

Não movido de orgulho ou de ambição.

Não à procura da felicidade,

Não por divertimento à solidão.

Amar-te - não por tua mocidade

-Risos, cores e luzes de verão-

E menos por fugir à ociosidade,

Como exercício para o coração.

Amar-te por amar-te: sem agora,

Sem ontem, sem futuro, sem mesquinha

Esperança de amor sem causa ou rumo

Trazer-te incorporada vida fora,

Carne de minha carne, filha minha,

Viver do fogo em que ardo e me consumo.

Aurélio Buarque de Holanda

"Tenho Razão"



Tenho razão de sentir saudade,
Tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste e sem te
despedires foste embora.
Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral,
A comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação até o limite
das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
Enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação,
O ato em si, O ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
De nossa convivência em falas camaradas,
Simples apertar de mãos, Nem isso, Vozmodulando sílabas conhecidas e banais que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades. Sim, Acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito de indagar porque o fizeste, porque te foste.
Carlos Drummond de Andrade

"Livros e Flores"



Teus olhos são meus livros.

Que livro há aí melhor,

Em que melhor se leia

A página do amor?

Flores me são teus lábios.

Onde há mais bela flor,

Em que melhor se beba

O bálsamo do amor?

Machado de Assis